quinta-feira, 18 de julho de 2013

monotonia

cristãos-novos enfrentam batalhas plásticas, fazendo de si mesmos seus próprios mercenários e alinhando-se nas trincheiras e na terceira pessoa. ordenando e coordenando ataques numa guerra, as faces reais permanecem impávidas na corte. em outro córner, um bufão de esgar sóbrio cria e atura de si mesmo um monólogo bifurcado, enfrentando o espelho, ansiando que este lhe dê uma visão diferente de sua própria. mais além, numa cadeira de espaldar alto, está o comendador, que chora de barriga cheia. por vezes, interrompe seu choro para observar uma mosca que busca em vão prolongar seus dias sobre um prato de comida macrobiótica.

então o comendador levanta sua mão.

de repente, todos param. para o choque entre espadins, cessam os gritos de guerra, as juras de morte, os desejos de sangue. dos dois lados, os guerreiros aguardam ordens. não se ouve mais o bufão. seus tiques dramáticos são substituídos por braços retos. sua sobriedade esvai-se numa cara de espanto. o mundo inteiro entra em colapso ao ver o comendador levantar a mão.

num átimo, sua mão cai sobre a mesa, causando um estrondo digno de malhetes. todos se rendem à solenidade daquele gesto e esperam. passa-se uma eternidade.

ao ver que todos o encaravam, o comendador ergue a voz, triunfante:

- matei!

em louvor ao abandono

felizes aqueles que se deixaram levar pelo tempo e pelo esquecimento, cravando assim sua imortalidade em retratos pendurados nas paredes. felizes os que esqueceram as rotinas, os mistérios, as intrigas e as manchas de sangue que acontecem naquela casa. felizes os que pularam a janela, apesar do tapete com mensagens acolhedoras que descansa em frente à porta. felizes ainda os que nunca perceberam que as paredes na verdade são muros, que as janelas são, de fato, grades, e que a porta tem sete cadeados. felizes os que só vão à casa para brincar no jardim. felizes os que, no jardim, nunca viram os rostos dissimulados pela penumbra na janela. felizes os que não se deixaram envenenar pelo ar permissivo que paira na sala, na cozinha, nos quartos e no escritório. mais felizes os que nunca se depararam com o cão a rosnar, espumas nos lábios, fileiras de dentes, verdadeira cinificação do sinistro. mais felizes ainda aqueles que nunca ouviram os cochichos que saem das frestas, das fendas e que mais pareceriam aos incautos uma pequena parcela de brisa. felizes os que, tragados pela vida, ainda conseguem voltar a dormir após os pesadelos.

deus

um pintor de rua cresce flores na calçada enquanto pés descalços pisam espinhos; seus pés sangram orgulhos, e moedas de gelo caem, ansiando derreter num uísque barato. 

um pintor de rua voa passarinhos na calçada enquanto pedras soltas guiam o caminho; dedos que nunca tocam, apontam, a esmo, não as flores, não os passarinhos, mas um deus. 

um pintor de rua se deita na calçada sem tinta e, esboçando um sorriso, borra vermelho ao seu redor; olhos atentos vêem a tela que o pintor usou para pintar a despedida, com flores e passarinhos. 

encostado na parede e com um cigarro na boca

encostado na parede e com um cigarro na boca, pensava no que vivera até ali. pensou na mãe, com o ventre no fogão, de onde saíram cinco crianças saudáveis: seus irmãos e irmãs, perdidos nos escombros da memória. pensou na noiva. nos amigos, presos ou mortos, resultado de vidas com rumos diferentes levando aos mesmos danos. guardou um lugar da memória para outros pensamentos. infância em minas, planos para mudar a situação. nunca teve filhos, nunca escreveu um livro, mas pensou ter plantado uma árvore ao enterrar aquela semente de ilusão. pensou nas pessoas que conheceu. ainda encostado na parede, deu um último trago quando chegou à conclusão de que nunca amou ninguém. ergueu a cabeça e assoviou uma marchinha carnavalesca. naquele momento, ouviu alguém gritar:
- fogo!

sábado, 6 de julho de 2013

soneto às mãos de deus

as mãos de deus são facas, são punhais
que ferem de silêncio a vida humana.
o corte é feito a seco; seus sinais,
rastros no vento, pés de caravana.

tais gládios entram fundo, pele a pele,
nos lembrando o poder e a onipresença.
não há um bem que vença, mal que vele,
fio de vida que burle sua sentença.

as mãos de deus residem na alma humana,
e ali, são mãos de mãe com seu suporte,
que crispam forte o filho ainda menino.

mas, se uma mão acolhe, a outra engana:
leva no ventre o filho para a morte,
que dorme até esquecer o seu destino.

o som sai da boca para quem toca

o som sai da boca
para quem toca
as cordas do violão
a voz que é tanta
arranha a garganta
e é bom que arranhe
assim a veia salta
assim o som pulsa
a voz entra mais alta
no coro dos corações
as notas são muitas
são perguntas à noite
são respostas à lua
gritos de surpresa
dados entre dentes
as cordas são presas
para quem vê de fora
as notas de uma canção
as notas são presas
para a aranha que mora
na boca do violão

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