quinta-feira, 12 de setembro de 2013

nunca fui de ficar parado por muito tempo

nunca fui de ficar parado por muito tempo
mas sou desses que deixam os braços cruzados
por isso meus pés têm muito mais tino que eu
as ruas as curvas os bares os labirintos
sabem dos meus caminhos de cor e salteado
mas é preciso mais que pés pra achar sua casa
só as mãos se fecham pra bater na porta
só os braços se abrem por sua presença
e os lábios se movem por seu beijo
e o corpo todo fica nas mudanças da água
o tempo casa com o destino e tem filhos lindos

digo-me dínamo

tudo em mim é dividido
dádivas, dívidas, dúvidas
e tantas divagações
me divido no que penso
me divirto no que sinto
indivíduo labirinto
que eu, sujeito, tomo assento
ando em débito automático
e portanto, tenho pressa
cada passo é uma promessa
de um cálculo matemático

carona

por favor, não se incomode com os roncos do motor
agora o banco do carro é o colo da minha mãe
fiz questão de usar álcool, não se preocupe
sim, lembrei de atacar o cinto de segurança
também não esqueci de ajustar o retrovisor
ainda tem dois pontos cegos no passado
mas não tem bronca, eu presto atenção
os vidros todos estão fechados
posso me ver refletido neles
é como se eu fosse comprar cigarro
com um sorriso que não tem amanhã
depois que você terminar os pratos
senta aqui do meu lado
por favor

não vejo mar nos olhos dela

não vejo mar nos olhos dela
vejo terra
terra não vem pra amar
vem pra guerra

a cor da terra invade
se instala
e prepara os canhões
tomando de assalto minha intimidade
sem disparar uma bala

há terra por todos os lados
nos olhos dela

às vezes gota d'água ou cascata
ou outra coisa qualquer
mas não vejo mar nos olhos dela
nem nunca mais o verei
nos olhos de outra mulher

quinta-feira, 18 de julho de 2013

monotonia

cristãos-novos enfrentam batalhas plásticas, fazendo de si mesmos seus próprios mercenários e alinhando-se nas trincheiras e na terceira pessoa. ordenando e coordenando ataques numa guerra, as faces reais permanecem impávidas na corte. em outro córner, um bufão de esgar sóbrio cria e atura de si mesmo um monólogo bifurcado, enfrentando o espelho, ansiando que este lhe dê uma visão diferente de sua própria. mais além, numa cadeira de espaldar alto, está o comendador, que chora de barriga cheia. por vezes, interrompe seu choro para observar uma mosca que busca em vão prolongar seus dias sobre um prato de comida macrobiótica.

então o comendador levanta sua mão.

de repente, todos param. para o choque entre espadins, cessam os gritos de guerra, as juras de morte, os desejos de sangue. dos dois lados, os guerreiros aguardam ordens. não se ouve mais o bufão. seus tiques dramáticos são substituídos por braços retos. sua sobriedade esvai-se numa cara de espanto. o mundo inteiro entra em colapso ao ver o comendador levantar a mão.

num átimo, sua mão cai sobre a mesa, causando um estrondo digno de malhetes. todos se rendem à solenidade daquele gesto e esperam. passa-se uma eternidade.

ao ver que todos o encaravam, o comendador ergue a voz, triunfante:

- matei!

em louvor ao abandono

felizes aqueles que se deixaram levar pelo tempo e pelo esquecimento, cravando assim sua imortalidade em retratos pendurados nas paredes. felizes os que esqueceram as rotinas, os mistérios, as intrigas e as manchas de sangue que acontecem naquela casa. felizes os que pularam a janela, apesar do tapete com mensagens acolhedoras que descansa em frente à porta. felizes ainda os que nunca perceberam que as paredes na verdade são muros, que as janelas são, de fato, grades, e que a porta tem sete cadeados. felizes os que só vão à casa para brincar no jardim. felizes os que, no jardim, nunca viram os rostos dissimulados pela penumbra na janela. felizes os que não se deixaram envenenar pelo ar permissivo que paira na sala, na cozinha, nos quartos e no escritório. mais felizes os que nunca se depararam com o cão a rosnar, espumas nos lábios, fileiras de dentes, verdadeira cinificação do sinistro. mais felizes ainda aqueles que nunca ouviram os cochichos que saem das frestas, das fendas e que mais pareceriam aos incautos uma pequena parcela de brisa. felizes os que, tragados pela vida, ainda conseguem voltar a dormir após os pesadelos.

deus

um pintor de rua cresce flores na calçada enquanto pés descalços pisam espinhos; seus pés sangram orgulhos, e moedas de gelo caem, ansiando derreter num uísque barato. 

um pintor de rua voa passarinhos na calçada enquanto pedras soltas guiam o caminho; dedos que nunca tocam, apontam, a esmo, não as flores, não os passarinhos, mas um deus. 

um pintor de rua se deita na calçada sem tinta e, esboçando um sorriso, borra vermelho ao seu redor; olhos atentos vêem a tela que o pintor usou para pintar a despedida, com flores e passarinhos. 

encostado na parede e com um cigarro na boca

encostado na parede e com um cigarro na boca, pensava no que vivera até ali. pensou na mãe, com o ventre no fogão, de onde saíram cinco crianças saudáveis: seus irmãos e irmãs, perdidos nos escombros da memória. pensou na noiva. nos amigos, presos ou mortos, resultado de vidas com rumos diferentes levando aos mesmos danos. guardou um lugar da memória para outros pensamentos. infância em minas, planos para mudar a situação. nunca teve filhos, nunca escreveu um livro, mas pensou ter plantado uma árvore ao enterrar aquela semente de ilusão. pensou nas pessoas que conheceu. ainda encostado na parede, deu um último trago quando chegou à conclusão de que nunca amou ninguém. ergueu a cabeça e assoviou uma marchinha carnavalesca. naquele momento, ouviu alguém gritar:
- fogo!

sábado, 6 de julho de 2013

soneto às mãos de deus

as mãos de deus são facas, são punhais
que ferem de silêncio a vida humana.
o corte é feito a seco; seus sinais,
rastros no vento, pés de caravana.

tais gládios entram fundo, pele a pele,
nos lembrando o poder e a onipresença.
não há um bem que vença, mal que vele,
fio de vida que burle sua sentença.

as mãos de deus residem na alma humana,
e ali, são mãos de mãe com seu suporte,
que crispam forte o filho ainda menino.

mas, se uma mão acolhe, a outra engana:
leva no ventre o filho para a morte,
que dorme até esquecer o seu destino.

o som sai da boca para quem toca

o som sai da boca
para quem toca
as cordas do violão
a voz que é tanta
arranha a garganta
e é bom que arranhe
assim a veia salta
assim o som pulsa
a voz entra mais alta
no coro dos corações
as notas são muitas
são perguntas à noite
são respostas à lua
gritos de surpresa
dados entre dentes
as cordas são presas
para quem vê de fora
as notas de uma canção
as notas são presas
para a aranha que mora
na boca do violão

terça-feira, 12 de março de 2013

poema


lá onde os vôos param de súbito
quando os pássaros morrem na varanda
e o calor deixa lembrança na pele

a vida se resume em dias da semana nos quais
[se pode beber
lá onde o amor é feito sob lençóis e pecados
(e apenas para filhos)

onde as putas fazem negócio às escuras
entre hábitos e coturnos

no lugar em que a música arde num só violão
[de geração para geração

não se ouve falar de poesia e o lunário
[perpétuo perdeu as folhas

livros morrem com olhos amarelecidos

essa poesia de fome e comida


essa poesia de fome e comida
essa coisa mal dormida
pão de anteontem

essa não canta em verso
é aquela que busco
no amor do ônibus lotado

basta um freio brusco
e é poesia pra todo lado

terça-feira, 5 de março de 2013

canção


enquanto passa o vento que me beija,
entro em meu silêncio e fecho a porta.
uma ponta de saudade ainda me corta
e dói-me pelos olhos sem que eu veja.

aspiro um ar estranho sem teu cheiro
e um nome paira entre anéis de fumaça;
se acendo a noite e meu olhar disfarça,
ainda escuto uma voz no travesseiro.

sinto dedos que de fato não são meus
num tato em lenta marcha pelo rosto.
ouço os verbos ditos, sinto o gosto,
mas todo o movimento faz-se adeus.

resumo


ontem pela manhã
uns sonhos bateram na porta.
resolvi não entendê-los
e mostrei minha xícara de café
e o jornal mais desperto do mundo.

ontem pela manhã deixei-me levar
pela onda de assaltos e assuntos.
ontem morreu alguém atropelado.
morreu a mãe de uma amiga chamada
ilusão. mandei flores e um abraço.

ontem à tarde, a beleza apareceu
de repente. eu não esperava visitas.
disse-me um poema que havia escrito
pela manhã.

à noite o amor surgiu no meio do jogo.

dei-lhe um tabefe na cara pra aprender
a nunca mais me atrapalhar.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

cigarro

quero ter mais palavras dentro do cigarro além de fumo, além de trago. uma dose de felicidade tabelada por fabricante e capacidade de destruição. quero mais palavras para um trago, mais felicidade no fumo; de que me serve saúde, de que adianta a proeza de prender o ar por mais tempo? com um cigarro, consigo prender o choro, o medo, a lâmina. o aço é frio, a faca sossega. há mais vida na brasa de um cigarro que no fogo dos meus olhos. os estalos do fumo e do papel de seda queimando são a canção perfeita. morra hoje, morra amanhã ou na próxima quinta-feira, trago mais vida entre os dedos. com a ponta do cigarro vou queimando no papel as palavras que não gostam mais de mim. mais um trago, e as cinzas caem num ponto final.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

canção


enquanto passa o vento que me beija,
entro em meu silêncio e fecho a porta.
uma ponta de saudade ainda me corta
e dói-me pelos olhos sem que eu veja.

aspiro um ar estranho sem teu cheiro
e um nome paira entre anéis de fumaça;
se acendo a noite e meu olhar disfarça,
ainda escuto uma voz no travesseiro.

sinto dedos que de fato não são meus
num tato em lenta marcha pelo rosto.
ouço os verbos ditos, sinto o gosto,
mas todo o movimento faz-se adeus.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

ao filho da puta da melhor estirpe



não façam cruzes em seu nome,
que ele não cria e não ia querer

ponham luzes nesse homem
que ele não há de morrer

foi-se embora a passo largo
foi-se embora pra pasárgada

não há césares em teu nome
e meu pesar é grande, júlio

à tua fonte, ó júlio
não há de se acabar

que és mesmo filho da puta
e tua luta é em outro mar

mas tu não me morras mais
não me morras

______________________________

este poema foi feito em homenagem ao poeta júlio saraiva, que morreu há pouco. não sei mais o que dizer, não sei verso nesse momento. só perdi alguma coisa. vou deixar aqui no blogue o link do blogue dele, o currupião. se vocês gostam de poesia, leiam, releiam. é o poeta com quem convivi sem nunca ter visto a cara dele de verdade.

www.currupiao.blogspot.com.br/

obrigado.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

volta



volta

mas não me voltes agora
espera a raíz dos sonhos
espera os sonhos florirem
espera eles darem frutos
e que tenham gosto

volta, sim

vem ver, escrevi na face
entre lágrimas e suores
a espera de dias melhores
um nome de flor e disfarce

volta

mas não me voltes agora
não enquanto eu choro
e tudo quanto escrevo
chora

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

neofobia


envelheça e eu te amo
tenha nome, tenha tino
tenha suas crias de pano
tenha medida e destino
seja feita sua vontade
de ser menino de verdade
mas antes que aconteça
cresça e desapareça

o que não tem raízes
não atrai raios de sol
não é feito infelizes
sob um mesmo lençol
não é feito de crises
nem feito à crisol

envelheça e eu te amo

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Hárte


todo o princípio se entrelaça
nos vinte nós de nossas mãos;
vêm dez pincéis da cor do faça,
pintando sim por sobre os nãos.

então lábios pousam pela pele,
deixando um beijo em revoada:
são dedos que falam as coisas
das bocas que não dizem nada.

as minhas mãos, não vendo nada,
apontam a estrada entreaberta;
os dedos são língua molhada
em cada toque mais alerta.

o corpo em rima se reparte,
boca e pele em verso torto;
mas acontece de haver arte
em cada parte desse corpo.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

primavera


em dois anos de inverno
não fazia flores
nas folhas do caderno

de repente, como não
se espera,
novamente em minhas mãos
explodiu a primavera

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

põe as mãos onde dói menos


põe as mãos onde dói menos
e faz-me sentir um beijo teu
parcela de brisa e venenos
carta de adeus lida no breu
põe em mim as tuas unhas
que supunhas curtas demais
deixa-me um gosto de açúcar
de pólvora seca de anos atrás
põe em meus olhos o que eras
inverno ausente no país do gelo
calor de gente, mar de cabelos
e faz-me implodir em primaveras

auroras que busco em noites vãs
criadas somente pra impedir o dia
mas definitivamente todas as manhãs
desaparecem quando tu me pões poesia

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

paraíso




e era como se eu fosse nuvem em suas mãos de vento.
me manipulava os quereres melhor que seus próprios,
me fazendo acreditar que o amor é isso mesmo,
isso de querer ser a coisa amada. amar é uma falta
de personalidade!

lembro mais claramente os dias nublados, pois nestes
eu tinha meus olhos de volta enquanto você deitava
e dormia um sono glacial durante eras. nesses dias,
podendo ver, tinha ciúme dos seus sonhos, já que
certamente eu não me encontrava neles.

já nos meus, mais breves e fugidios, havia crimes de sangue
e cenas policiais. eu sempre era o culpado, mas a culpa
é toda sua! garrafas de vinho, xícaras de café e maços
de cigarro eram tatuagens em sua rotina, só visíveis
quando você estava nua.

mas era feliz, mais feliz, desperto. o seu corpo balançava,
espantando todo o gelo dos sonhos, que caíam sobre mim
e nevavam meus desejos. queria ser artesão de você,
patrão de você, ladrão de você. mas, no fim das contas,
havia giz ao meu redor.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

digestais

o que sei de meus dedos finos
quando os olho, enternecido:
na mão leve, cinco bandidos
transfigurados em meninos.

uma mão procura o fogo-fátuo,
o verso que se relê no ventre,
permitindo, ao verbo incauto,
que, riscando seu nome, entre.

e há leveza em outros dedos
quando voam, pássaros ateus
ao céu do aceno, sem nuvens,
perdidos em gestos de adeus.

domingo, 27 de janeiro de 2013

ode aos teus seios portanto em versos bárbaros


imersos em teus seios, o que escondes?
faz-se versos entre anseios e soluços?
sei que toda a natureza cai de bruços
se me vaga o pensamento no que escondes.

só me escoam da mente em devaneios
ecos mortos que ao receio nunca agem
vibram cores que esboçam os teus seios
dos pincéis viciados em paisagem.

se mostrares uma brecha nos enredos
vais deixar, vais querer que eu entre
vais sentir os passos destes dedos
nas veredas e relevos do teu ventre.

é barbárie calculada em ponto morto
quando olho e paro e penso no teu corpo.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

o cansaço das horas mortas



não me venhas com romances
flores e velas e livros
não me mates o juízo
quero-me sóbrio de ti

não me ames como me amas
com esse riso de encontros
e olhos de despedida
que me deixam tonto de luz
e de chamas

hoje quero-te ausente
para que eu te sinta
e te minta em minha frente

não me digas de nós
que não quero morrer
emborcado nos lençóis
embebidos de eternidade

peço-te mais um dia
uma hora e um segundo
e o mundo surgiria

tens-me nas mãos
tens-me nos pés
no corpo todo
em sombras
e marés

não me mates o juízo
não me venhas com romances
que não quero morrer
embebido de eternidade

já fechei todas as portas
que dão para onde vives



só preciso que me livres
do cansaço das horas mortas

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

a ascensão de um rascunho


soa muito mal quando alguém diz que tem medo de olhar pra cima. mesmo eu não sabendo o motivo, as palavras que mais gosto surgem do papel das nuvens, brancas, amorfas, cheias de qualquer coisa chamada transfiguração. nuvens são as pranchas de surfe de jesus, e o céu, pobre mar para o qual olham pra cima com medo de salpicar os olhos e arder a vista. por isso sempre carrego nos bolsos um pouco de sabão emborrachado: pra apagar os sais que surjam neles. é como se não fosse bonito chorar, mas não é mesmo. ter medo é como lançar uma bolinha de papel para cima e correr, pensando que ela vai crescer enquanto sobe e descer pesada, com vinte toneladas e do tamanho de uma baleia orca, bem em cima da gente. eu não: quando lanço bolinhas de papel para cima, já vou imaginando que nuvem ela vai ser quando crescer. por isso é que odeio as coisas mais fáceis do mundo. por que é que as filas de banco não têm flores no meio? também detesto flores nos poemas. acho que flores nos poemas são feitas pros poetas ficarem felizes de metê-las, líricas, bem no meio de seus rabos. nunca haverá flores em meus poemas, mas sempre carrego uma no meu bolso, pra plantar no meio da próxima fila de banco em que eu tiver que entrar.

os poemas são índios


ao redor da fogueira, histórias,
memórias vivas de antepassados:
são feito nudezes ensimesmadas
aos olhos do índio, imaculados.

usando verbos de zarabatana,
qualidades são caçadas noturnas:
precisam de uma quieta paciência
pra saírem, timidamente, da furna.

os poemas são índios
numa aldeia de idéias;
olhos virgens de caravelas
pés na areia dos gerúndios...

meu coração é uma velha louca cheia de gatos


meu coração é uma velha louca cheia de gatos.
tem paredes com manchas de patas e marcas
de unhas, cicatrizes inimitáveis da presença
de gatos na casa da velha louca. não há espaço
nem sequer para meus pensamentos em palavras,
porque miados sempre interrompem na madrugada
dos meus defeitos. sinto-me perfeito, até,
quando é lua cheia e o amor tem gosto de música.

não sei em que ponto está esse pensamento,
alguns miados acabarão com ele antes que
meus dedos possam formulá-lo.

meu coração continuará sendo uma velha louca
cheia de gatos porque uma nova ninhada está
para chegar, e eu não quero deixar de cuidar
de todos os filhotes até vê-los abrindo seus olhos,
praticamente cegos para um mundo de cães.

delírios de uma gota de espuma




baila a gota de espuma
sob o olho atento
do vento

ainda ontem
quando era criança
meu maior segredo
era a felicidade

a gota de espuma
baila sob o vento
de olhos atentos

a gota de espuma
é uma criança
com a felicidade
nos bolsos...

calma molhada


os rios que correm de mim
se fundirão comigo mesmo
e encontraremos no mar,
no frio, na água, o abismo.

o abismo nos engolirá devagar;
o tempo da queda não será calculado.
o que era rio e que era eu e que era mar,
será então tristeza sem saudade ou poesia.

assim, depois de chegar ao fundo,
pedirei a um deus que não existe
que cuide de tudo em minha ausência;
fui deitar na calma molhada dos peixes.

a dor molhada


...e escorre a dor
pelo canto da boca.
sequestra o sorriso
e leva umas esperanças.
a dor furta sonhos.
o silêncio dos olhos.
sem que se note,
sussurra mortes
em anos de juventude.
a dor molhada irrompe.
irrompe num rio revolto.
qual represa cheia de dedos,
a mão seca a dor pelo rosto.

rascunho entre os dedos




tenho tanto em minhas mãos
que não sei onde começo
tenho notas, tenho preços
a esperança da nação
tanta coisa em minhas mãos
tenho datas, telefones
informações e teu nome
estradas para as estrelas
com atalhos detalhados
a vida de outros homens
mãos de meus antepassados
trago riscadas na palma
as travas da minha alma
os dias em que a espera
tinha tons de primavera
as noites em que a procura
chegava a bater na cintura
com as águas dos teus olhos
trago tanta coisa nas mãos
que por vezes me escorrega
brilho intenso, facas cegas
sangue e suor de orações
firmemente pendurados
trago ódios bem pensados
e amarrados em trovões
tenho tanto em minhas mãos
as datas dos meus degredos
o teu nome entre os medos
que não saem com sabão
tenho tanto em minhas mãos
tanto tudo quanto nada
levo olhos de segredos
mas ainda hoje cedo
tive por entre os dedos
teu sorriso de enseada

célula


há, atadas em minhas pernas,
minha língua, minhas mãos,
frases de quases e nãos.
têm-me coxo, mudo, frouxo,
verso escrito nas paredes
das celas de uma prisão.
não me saio, não me privo,
não motivo uma revolta
sem saber se o que me solta
me deixará vivo ou não.
meu conhecimento é nulo
no casulo onde me ponho,
mas, hasteado, tremulo
um trevo de quatro folhas
onde falham-me as escolhas
e inspiram-se meus sonhos.

sábado, 12 de janeiro de 2013

o destino que quero aos meus versos


que um dia alguém declame
os meus mais lindos versos
para alguém que ame.
que, dispersos, meus versos
façam alguém chorar saudade
que lembrem da liberdade
de amar sem nenhum ditame.
que um dia alguém os grite
pra que, dos olhares, lhe fite
o olhar mais desejado.
que os versos que amaldiçôo
sejam bem ditos a uma nova musa
e, não sendo meus, levantem vôo
pro amor de alguém que bem os usa.


___________________________
mais um poema antigo que revisei.

quietação


não quero amor, não quero festa
nem os parabéns na canção
quero o tempo que me resta
imerso na solidão

quero um labirinto em volta
uma inexorável fortaleza
feito um rio, em sua revolta
enclausurado numa represa

deixarei que o silêncio escorra
nos meus versos de solidão
e que (deus!) sozinho eu morra
só com lápis e papel na mão.

_______________________________
um poema antigo que resolvi revisar.

o resto são passarinhos

por vezes imagino o quão inútil é o meu conhecimento e meu desejo de conhecimento, e o conhecimento dos outros e o desejo de conhecimento dos outros. e imagino que não há nada entre a vida e a morte além disso mesmo, vida e morte, morte e vida, todos os dias e em todas as eras o mundo se resume nessas três palavras, vida e morte, e que me tornam quem sou até que eu parta e reste de mim apenas o que se souber de mim. não o que penso, mas o que pensam que penso, não o que sou, mas o que pensam que sou. e o que sou, de fato, além do que pensam que sou?

mas depois de idos os pensamentos sobre mim, não restará nada além de um corpo se putrefazendo, um bando de ossos baldios num saco de lona junto com outros ossos baldios, que muito provavelmente pertenceram a ditos parentes meus que serão esquecidos antes de mim, ou assim espero.

e pensar que tudo o que eu quis dizer ao começar a escrever era que você estava linda naquela tarde em que passeamos de mãos dadas rumo ao nada mais que passear de mãos dadas. e pensar que eu tinha tanto medo que o tempo chegasse, e agora só peço que passe, mesmo que eu morra antes de ver o sol nascer em seus olhos, e ver morrer a última flor da noite todas as noites quando você dorme e põe em mim todos os meus medos de anos atrás.

e pensar que poderia resumir tudo isto num poema insípido e completamente equivocado daqui a uma semana, mas que sempre traria nas vírgulas uma marca em cera abrasoando o quanto te amo, e a saudade que tenho do dia em que passeamos de mãos dadas e você acaba de dormir com a cabeça em meu colo, sabendo que mais tarde te levarei nos braços com todo o cuidado para que você não acorde num presente em que outro te segura nos braços e que o meu maior medo é que este não saiba te manter segura. mas isso já passou. o resto são passarinhos.

Parcialmente


Era quando você falava de tudo, quando você me deixava assim "uau"
e eu calava meu espanto (ou tentava), parcialmente porque queria achar normal, 
ou parcialmente porque eu te amava e não queria parecer tão frágil assim.
Era assustador aquele sentimento, aquele conhecimento precoce que havia
e que me levava pras alturas... Estar com você era cair de um avião
sem saber do risco, sentindo o vento e tocando uma música nas nuvens...
parcialmente porque te achava linda, ou parcialmente porque eu te amava.

Não sei o que sobrou de mim, de como eu era naquele tempo,
já não trago mais as mãos suadas nem os olhos oceânicos, 
salgados e profundos, nem o beijo em formato de sorriso 
que te mandava, parcialmente porque era tudo o que 
eu mais queria ou parcialmente porque eu te amava. 

Não sei direito, porque naquela época, minha visão era sempre turva,
e não houve nenhum daqueles médicos de olhos (dos quais esqueço o nome agora) 
que me dissesse, que conseguisse definir o meu problema sem fingir.
Sem fingir e dizer "é alguma virose, durma bastante e beba muita água". 

Agora que meus olhos estão abertos e agora que descobri que aqueles médicos 
estavam errados, sei qual era o meu problema. Sei o que fazia do mundo 
um lugar melhor pra mim, sei o porquê da sua presença amarrar cordas 
em meus sorrisos e pendurá-los no céu da minha boca; sei a razão sem 
vontade de ser razão que era as nossas brigas, os nossos afagos, 
as confissões. Sei, agora que você já não está aqui.

Era parcialmente porque eu te amava. Talvez fosse parcialmente porque te achava linda.

Hoje, amanhã, depois de amanhã e em todos os dias 
que vierem depois de ontem, haverá nostalgia. 

Parcialmente porque eu te amava, parcialmente porque eu ainda te amo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

diversifico


meu amor é diverso:
cada dia uma mudança.
mas canto em cada verso:
te amar nunca me cansa.

se canto e cada canto vaza
nunca há eco no que canto:
se uma hora eu canto asa,
num segundo engasgo espanto.

vês que permaneço incauto,
em fogo, em verso, em brisa:
pra ver nascer a flor do asfalto
em cada lugar onde pisas.

eu te amo em cada chance
e, não desistindo, te peço:
pra evitar que te canses,
lembra do primeiro verso.

foi assim que me vi

 

foi assim que me vi
numa praça no parque
no paraíso numa tarde
com chuva ou sem sol
com gelo fogo e doce
meio dia, meio noite
meio signo do zodíaco
meio nosso paraíso
bem mais que isso
era mais ou menos
o meu no teu sorriso

eu que nunca comi amoras

 

eu que nunca comi amoras
consigo ver o seu gosto
na cor que brota em teu rosto
quando ris ou quando choras

vi-as em fotografias
turvas e cheias de outroras
que nem teus olhos ficam
quando ris ou quando choras

eu que nunca comi amoras
percebo seu gosto em ti
entre outras coisas que vejo
quando ris ou quando choras

de fumaça e esperança

 

gosto de ver-te anelada
na fumaça entre os dedos


te ponho em vestido de casa
de casamento, boneca de pano


viajo numa brisa vermelha,
brasa que me eriça a nuca


gosto vadio de açúcar
chocolate caseiro


em meus dedos brancos
ponho uma aliança
feita mais ou menos
de fumaça e esperança

debaixo dos pés do amor

 

debaixo dos pés do amor
a palavra não é ponte
mas talvez escrevê-la
nos faça um horizonte
onde mais que ontem
haja luz das estrelas
a guiar nossos ondes
e a mandar o destino
desmanchar o acaso


a consolar nosso olhar
feito distância e tempo
de caminhos, movimento,
que a palavra possa dar
sentido a esse sentimento
que haja placas no lugar
de concreto e esquecimento

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